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Durante a minha vida tenho sofrido de um grande problema.
Fui criado ateu.
Isto é, cresci numa casa ausente de doutrina ou crença religiosa. Os meus pais não me criaram com o propósito de ser ateu, simplesmente deixaram tudo seguir o seu curso. E, afinal de contas, o estado natural de uma pessoa é a ausência de uma crença num deus específico ("deus" sem "d" capital é de propósito) pois essa crença tem de ser ensinada.
Seguir o curso parece resultar, no máximo, em agnosticismo. Vou ignorar a minha fase niilista e a minha fase solipsista por razões mais ou menos óbvias.
Seja como for, isto é um problema não porque hei-de arder no inferno para todo o sempre ou porque não pude usufruir da alegria de assistir a missas fascinantes.
O meu problema é que, na melhor das hipóteses, só me ensinaram no que não acreditar.
É claro que me incutiram valores, mas simultâneamente aprendi que não existe uma única verdade, o mundo é feito de tons de cinzento. E por isso nunca devo ter a arrogância de julgar ter uma certeza absoluta. Isto significa também que as minhas "crenças" e valores vão mudando ao longo do tempo e que grande parte dessa mudança é da minha responsabilidade. Portanto, ao contrário de uma percentagem considerável de crentes, as opiniões que tenho agora não são as que sempre tive, e foram trabalhadas por mim pois ninguém me deu uma lista no que devo acreditar sem contestar. Por outro lado, as mudanças que ocorrem são também do contacto com as outras pessoas, com outros pontos de vista que me são apresentados.
E toda esta introdução (sim, leram bem, introdução) porquê? Porque tenho uma crescente dificuldade em mudar de opinião sobre o casamento homossexual por muito que pessoas inteligentes e cultas debatam um ponto de vista contrário ao meu.
Em primeiro lugar, a verdade é que não dou muita importância a este assunto. Pelo simples facto que não dou importância ao casamento, homo ou heterossexual. Não creio que deva ser uma prioridade na vida de seja quem for e parece que a nossa sociedade está de acordo tendo em conta o decréscimo no número de casamentos e o aumento de divórcios. Pode ser que o casamento como o vemos agora seja como o panda - um animal em vias de extinção que se recusa a perpetuar neste mundo.
Em segundo lugar, presumindo que poderia até achar alguma piada a isto do casamento, continuaria a não perceber os argumentos contra o casamento homossexual. E aqui posso ser eu que estou a ser burro.
Um dos argumentos mais ouvidos é que "O casamento sempre foi entre um homem e uma mulher, sempre foi assim e sempre o será. Faz parte da definição de casamento".
Bem, de facto parece ser verdade, se excluirmos comunidades polígamas. E é este o meu principal problema com este argumento. É que para além do requisito de ambos os sexos estarem presentes, as outras características do casamento não são exactamente idênticas em todas as culturas, existem variações. Mais importante do que isso, na nossa cultura o casamento sofreu mudanças com o tempo, algumas delas ligadas ao facto de as mulheres adquirirem mais direitos e do nosso paradigma cultural sair gradualmente de uma centralização na figura masculina.
Pergunto-me se, quando se começou a falar de poder ser permitido o divórcio nos casamentos católicos em Portugal, os portugueses da altura também afirmaram indignamente que "O casamento entre duas pessoas é até ao fim da vida, sempre foi assim e sempre será".
Outro argumento é "Se for permitido a dois homens ou a duas mulheres casarem então não tarda as pessoas podem casar com animais". A verdade é que esta reivindicação do casamento homossexual é uma questão de igualdade de direitos entre os membros da raça humana. Os animais não são seres humanos.
E em última análise, o que é que tem se um doente mental quiser casar com um animal? Não estou a dizer que defenda o conceito, mas como é que isso afectaria negativamente a vida das outras pessoas?
Outra semelhante é "Não tarda podem-se casar 2 homens e 3 mulheres, ou 4 mulheres e 5 homens e outras misturadas". Tenho duas respostas para isso: 1 - Se demoramos tanto tempo a debater e a aprovar o casamento entre duas pessoas do mesmo sexo, demoraríamos pelo menos igual tempo a debater e a possivelmente aprovar o casamento polígamo em Portugal, e estou a falar de centenas de anos. O mesmo aplica-se em duplicado para o ponto anterior sobre o casamento com animais; 2 - E, exactamente, qual era o mal?
O argumento que mesmo assim aparenta ter uma base mais sólida é a questão da adopção. "Primeiro casam-se, depois podem começar a adoptar crianças pequenas!". Muito bem, parece-me um seguimento lógico, afinal de contas é outro dos direitos que a comunidade gay tem lutado por adquirir. O problema que as pessoas têm com isto é o acharem que uma criança criada num lar com dois pais ou duas mães irá tornar-se altamente perturbada. E, de facto, há teorias psicológicas largamente aceites que estipulam teoricamente que uma criança nessas condições poderá sofrer de alguns problemas psicológicos mais tarde na sua vida. No entanto, não existem estudos científicos que comprovem esta ligação.
Mas imaginemos, hipoteticamente, que é verdade que uma criança nessas condições tem maior probabilidade de ter certos tipos de problemas psicológicos. Essa criança ficaria melhor num orfanato até aos 18 anos sem qualquer pai ou mãe ou um cuidador carinhoso estável ao longo do tempo? O amor paternal dos homossexuais é assim tão mais perigoso, potente e nefasto do que a ausência de amor? Além do mais, não é qualquer casal heterossexual que consegue adoptar uma criança, a maioria dos casos são submetidos a longo e elevado escrutínio e se as pessoas não forem consideradas física ou mentalmente aptas para cuidar de uma criança, são recusados como pais adoptivos. Existe alguma razão para pensar que casais homossexuais não seriam submetidos a igual escrutínio?
A propósito, se se trata apenas da questão de uma criança ter de ser criada por um "pai" e por uma "mãe", deveríamos também retirar custódia a mães e pais biológicos solteiros, divorciados ou viúvos? Devem essas crianças ser postas para adopção?
Nós, seres humanos, temos a irritante mania de integrar dicotomias, o que é altamente ilógico. A verdade é que desafiamos o racional a cada dia que passa. Por isso é que passamos a vida a querer ver grandes mudanças à nossa volta e ao mesmo tempo temos um imenso medo da mudança.
Posso estar errado, mas parece-me que uma pequena razão desta revolta contra o casamento homossexual é um profundo medo da mudança. E, principalmente, do que essa mudança pode significar para a forma como as pessoas se vêem a si próprias e à sociedade.
A maior parte desta revolta é, no entanto, o medo da homossexualidade em si. As pessoas sentem como uma ameaça a si próprias a existência de pessoas neste mundo a cometerem os actos profanos e nojentos da homossexualidade. Mas enquanto os homossexuais forem cidadãos de segunda, enquanto mantiverem esse comportamento escondido, o desconforto não é tão grande. O problema aqui é que, se os paneleiros e as fufas do mundo decidem ter a ousadia de se comportarem como pessoas normais na rua e se o seu afecto for socialmente aceite, a porra do Apocalipse chega de uma vez e em breve vamos ver bebés de 5 meses já homossexuais, com metralhadoras nas ruas, a fornicarem com cães vadios e a espalharem doenças venéreas através do ar.
Enfim, basicamente... deixem lá os homossexuais casarem-se. Afinal de contas eles também têm o direito a serem infelizes.