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Encontrei uma rapariga que
Está mal. Encontrei uma mulher que um dia foi uma rapariga que eu conheci. Andámos à escola juntos e eu não a via há muitos anos. Foi o passado a dar-me uma bofetada na cara.
Os antigos gregos tinham uma forma curiosa de recriar as suas superstições intelectualizadas. As personagens e as divindades eram representativas de emoções humanas ou de caminhos de percurso bastante particulares - Eros e a sua contraparte, Afrodite, representavam o amor, a beleza e a sexualidade/fertilidade; Zeus representava aquele que para se tornar homem tem de castrar um pai tirano; Ares representava a guerra e a violência, e por aí adiante.
Da mesma forma, cada um dá às pessoas que vai conhecendo ao longo da vida um estatuto de figura mitológica pessoal. Há pessoas que associamos a uma emoção em específico ou a outros caminhos que nós não tomámos.
Para mim, a tal mulher que eu uma vez conheci como a rapariga que essa mulher foi, representava a Vergonha Sexual.
O seu corpo começara a ganhar forma bem antes das suas colegas. Tinha além do mais um cabelo bem tratado e era considerada uma rapariga bonita. Não era de admirar que tivesse também tomado interesse por rapazes mais cedo. A sua biologia tinha achado por bem fazer o seu físico desenvolver-se antes da hora e não poderia sair impune por isso. Despertava o pior dos outros.
As raparigas sentiam-lhe ódio - era o perfeito bode espiatório para as suas inseguranças em relação ao seu próprio corpo, figura e beleza. Os rapazes, por ela lhes lembrar a sua insustentável imaturidade física e a baixa auto-estima que daí vem, gozavam com ela ou aproveitavam tão generosa e abundante oportunidade para começar a sentir deleite pelo corpo feminino e por o objectificar em primeira mão. E por vezes utilizavam mesmo uma mão ou duas para tais efeitos.
Eles e elas chamavam-lhe puta. Oferecida. Convencida. Gritavam do seu mais fundo as suas inseguranças e quem pagava era ela.
Não me lembro de ter participado em tais coisas. Mas também não me lembro de alguma vez lhe ter estendido a mão em amizade ou de tentar fazer para que aquilo parasse uma vez que fosse. Também eu era cobarde. Não queria ser odiado.
Surpreendi-me quando a voltei a ver tantos anos depois. O tempo não foi generoso com ela. Perdeu a sua forma esbelta e bem contornada. O rosto bonito mostrava agora um profundo cansaço, dando a ilusão de ser mais velha do que é realmente, e a sua vida dava a impressão de um beco sem saída.
Cumprira-se tudo aquilo que alguma vez tinham desejado para ela.
Andávamos todos à escola. E ela aprendeu bem a lição.