Quando soube que o Cinema King ia fechar tive um assombro. Não de espanto porque isto é daquelas notícias que quando surgem não admiram ninguém. Foi memória.
A última vez que fui ao King foi com uma ex-namorada da altura. Digo "ex" porque o que tínhamos nesse dia eram os estrebuchos finais de uma relação. Um amor moribundo ao qual recusávamos a eutanásia por medo da solidão.
Vimos um filme francês horrível do qual não me lembro o nome. Qualquer coisa sobre relógios, talvez. Todo o filme rodava à volta de um casal, as únicas personagens existentes. Ele um homem de meia-idade. Ela um fantasma - a amante morta que o assombrava dia após dia através da normalidade da sua relação.
Durante metade do filme assistíamos a monólogos e diálogos que iam do mais profundamente banal até ao mais superficialmente existencial. Durante a outra metade víamos cenas de sexo, que na verdade se tratava do homem a fazer amor com alguém que não estava realmente lá.
E agora é quando surge a questão à música de David Bowie. O filme ou era mesmo mau ou então era só uma seca por ser tão parecido à minha vida naquele momento.
Fosse qual fosse a realidade, a verdade é que no final desse dia disse-lhe que tinha a sensação que aquela podia ser a última vez que nos víamos um ao outro. Coisa que foi verdade. Até deixar de o ser. Mais ou menos.
Passado um ano voltámos a encontrar-nos por coincidência. Só que não éramos as mesmas pessoas. O amor tinha morrido há muito, mas mesmo assim num assombro súbito cometemos a estupidez de o tentar encarnar mais uma vez durante uma noite só.
Mais anos passaram. E o que se passa com o passar dos anos é que o movimento das folhas de calendário exorcizam os fantasmas. Mesmo os fantasmas de alguns amores mortos.
É por isso que o piores amores são os que se recusam a morrer de vez. Porque quando as coisas não morrem, tornam-se fantasmas.
Pode ser que o Cinema King assombre todos os que o conheceram, uma vez ou outra.