- Sabes, tu até que passas por fodível.
O sabor a café permanece na minha língua. É um sabor pálido. E é esta a forma de ela começar uma conversa, como se fosse a continuação de um discurso interrompido pela transição de nexos da realidade e fosse minha culpa não ser capaz de acompanhar o solilóquio interdimensional.
- O teu problema...
Foda-se. Sempre há continuação. Não tive a sorte de desfasar do universo a tempo.
- O teu problema é não seres homem que chegue.
Pausa. Como se eu tivesse algum papel nesta conversa e ela me desse a cortesia de perguntar o que quer isso dizer.
- És um menino. Não tens auto-confiança. E isso nota-se. É por isso que as mulheres ou não te querem ou acabam por te trocar por alguém que até as trata pior. Desde que as trate mal mas com convicção... percebes? Mais vale isso do que estar sempre aberto a interpretações. E tu nem és assim tão bom rapaz, fartas-te de fazer merda como qualquer um. Mas não te defendes quando não tens razão.
As mesas do bar reflectem a luz artificial de uma forma estranha, como auréolas torpes que alguém pouco talentoso se lembrou de adicionar a um cenário já bem estabelecido. Há pouca gente - estamos a meio da semana e faz frio.
- E eu sei que tu achas que isso é uma qualidade mas não, é um defeito. Ninguém gosta de panhonhas e tu pensas que és um intelectual mas no fundo és um panhonhas. E as mulheres querem foder e foder bem, tal como qualquer homem. Ternura é bom mas não chega. É preciso sacanice para segurar uma mulher na cama.
Como se tu soubesses alguma coisa sobre isso.
- Não olhes para mim assim. Sabes bem que tenho razão, não vale a pena contestar. Por muito que o negues, sei que tu sabes que eu tenho razão.
Levanto-me para pagar a minha curta conta. O balcão está pegajoso e eu sinto-me pegajoso por dentro também.
É a última vez que venho beber café sozinho.