sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Durmo


Destes nossos gestos sem lei, vimos uma regra mais antiga que o tempo beijar a fronte dos nossos antepassados. Nada mais que grilos falantes, tentando afastar a noite com canções de insónia enquanto os soldados da miséria cosem novas cordas nos seus lábios, com o único propósito de tocar violinos de amor não falado.

E perguntas-me tu que espero eu retirar do balde que faço descer no poço. Que posso eu trazer à luz do buraco escuro que me sustem a sede.

Mas quando a máquina terminar o seu trabalho e as viúvas retornarem a casa, serão os botões a pratear as pálpebras com que teço o meu fim. Porque a olhar para o mundo, um dos pestanejares será o último. Só que eu não sei qual.

terça-feira, 7 de julho de 2015

Estava só. Li. Deu dó.


Se podíamos ter feito diferente.

Talvez. Mesmo que não tivesse feito a diferença, podíamos ter feito diferente. Transformar os infinitos entre os átomos e os vazios de crença que caem em cascata sempre que não nos falamos a nós mesmos. E um ao outro.
Saber dizer-te, a um ritmo só. Saber que te dizer quando perguntas sem falar que foi que me aconteceu para ser como sou... sem me querer mudar, claro. Se foi o que me fizeram que me fez como sou.

Nada aconteceu, na verdade. O mesmo que a ti. O mesmo que a todos nós.

Foi só um espirro estelar. 

domingo, 14 de junho de 2015

Canção de embalar


O melhor é viver esta morte que pede colo de braços estendidos. Aceitar de bom grado o trago de tristeza que adormece a boca e ensurdece o embalar de amor do sono que evitamos. Passo a passo sem pisar as falhas - na dança de quem não consegue aguentar mais um único olhar. Esticados em linhas de som, à espera de secar no vazio do sempre. Tudo melhor que ficar preso a esta veia de dentes cerrados e fome de começar de novo, começar de novo, começar de novo.

O melhor é viver esta morte que pede colo de braços estendidos. Trocar a ordem do cagar e transformar a merda em ouro sem sujar as mãos. Não fosse ser português falar de tudo o que nos faz tristes sem mostrar mesmo o que nos vai na alma. Encobrir o pior com o apenas mau, um confortável leito de porcarias que fazem todo o sentido por sermos quem somos. Agora tapa a boca. Vai dormir.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Dois segundos


Quero chegar a velho para olhar para ti nos olhos e dizer:
"Olha para nós. Capazes de saltar grandes edifícios, mas ainda não aprendemos a encurtar a distância entre os dois estalidos de vida que os nossos corpos criaram".

Quero ainda antes disso aprender a usar a linguagem de um beijo a uma língua só. Falá-la sem que seja preciso outra boca e com essas palavras húmidas de nada dizer tudo o que não precisa de ser dito mas que precisa ser ouvido, antes que as ondas cheguem e arremessem os nossos ossos pela crosta terrestre, fazendo do nosso planeta uma maraca solitária em torno de um sistema solar.

Quero dormir em flores em pranto. Fazer de tudo o meu sol-e-dó.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Dragões e Castelos


Tira as pedras de dentro dos ouvidos e ouve-me gritar.

"Não, mãe. Eu não quero mais ervilhas. E não me mintas: lá fora há um dragão para eu montar".

A primeira vez que me lembro de lembrar, é à mesa. Dias em que em que a tristeza escorria lentamente em gotas nas janelas enquanto raspava o prato, plástico como a casa em que morámos. E se a tristeza não chovia cá dentro não é por causa da longa mentira de que as crianças só sabem ser felizes. Era porque ainda não tinha altura que chegasse para lhe abrir janela.

Mas é como toda a gente diz. Os miúdos crescem rápido.

Aos 8 anos. Foi aí a primeira vez que me lembro de querer morrer. E a partir daí, aprendi a não o dizer. Porque o trabalho de um adulto é proteger a criança do mundo. O trabalho de uma criança, é proteger os pais dela própria. E do que ela faz um adulto sentir.

Está tudo bem. Esteve sempre tudo bem. São só coisas da minha cabeça.

Porque o meu coração é um T4, com duas aurículas e dois ventrículos onde qualquer um pode morar sem se fazer ouvir. E o meu amor é um ventríloquo que só grita pela boca dos outros. À espera de sussurros de ecos que queiram morar entre paredes, saltitando até ao tecto para um dia rebentar.

Entra.
Há espaço que chegue.

E lá fora há um dragão para montar.

domingo, 29 de março de 2015

Quando o amor toca


Dá-me um amor que não se cala. Um amor que me acorde pela manhã antes do despertador tocar e que me mantenha acordado de noite até à exaustão. Um ruído persistente que não deixa o coração em paz e que ponha os vizinhos a bater nas paredes em desarranjo. Quero um sofrer incómodo que fale mais alto que tudo o resto. Um barulho que afogue todos os outros. Até que um de nós ensurdeça.

quinta-feira, 26 de março de 2015

Trinca


Só quando saíste da minha boca é que ouvi o disparo.

Um reflexo no escuro.
Uma silhueta da alma de não-sei-quê a pairar entre os dentes. O cano do revólver a fumegar.

Tudo são palavras. Mas nos seus espaços o abismo. E pudéssemos nós entrar nele. Cortar a linha salva-vidas num gerónimo mudo e tropeçar no nada. Entrar nele para talvez não voltar.

Talvez aí fosse uma questão de tempo até que o tempo não importasse.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Com amor, M.


Fui a única a segurar a tua mão enquanto morrias. 

Os teus olhos de medo flutuando à tona dos teus verdadeiros azuis, como se mais nada alguma vez tivesse existido. Rodopiando em lentos carroceis avariados, num movimento sincronizado com o teu primeiro - e último - sorriso ao contrário. 

É sempre essa a parte que me deixa mais triste. E é também a minha preferida. O amor é mau quando acaba. Mas acaba sempre. 
Eu sempre precisei de companhia. Mesmo que breve, mesmo que não desejada. Ser amada de volta é raro, mas é bom ter alguém para desejar.

Em troca, podes esquecer todas as tuas lutas e dívidas. Que a última dívida que cumpres, é aquela que te dão ao nascer.


segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Resoluções de Ano Velho


Não sei, nem nunca saberei, como é com as mulheres. Mas tornas-te num homem quando tens medo dos homens que vieram antes de ti. Principalmente quando esses homens foste tu mesmo.

Há algo de perverso nas resoluções de ano novo. São promessa que, do hábito de não se cumprirem, se fazem e se quebram sem que pese a consciência. Porque o resultado é o mesmo, apresento-te as minhas 10 resoluções de ano velho, na esperança que faça a diferença a pelo menos um de nós.

  1. Prometo não ter engordado quilos que nem me dei ao trabalho de contar.
  2. Prometo que só fumei quando tinha mesmo de fumar e que isso é muito relativo.
  3. Prometo que não deixei de escrever. Porque foi por essa pessoa que te apaixonaste. E porque essa pessoa é das poucas em mim pela qual tenho algum respeito.
  4. Prometo que não te abandonei. Nem me esqueci de ti por um instante que seja.
  5. Prometo que não deixei de te apoiar naquele sábado de chuva em que precisaste.
  6. Prometo que não segui as pisadas do meu pai e que não bebi uma única vez para escapar de quem sou.
  7. Prometo que não deixei a minha alma solidificar.
  8. Prometo que não deixei de me esforçar por ser quem queria ser.
  9. Prometo que não fiz nenhuma promessa oca. 
  10. Prometo não ter partido o teu coração e o meu 10 vezes que pareceram seguidas.

Um brinde ao ano velho.

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