quinta-feira, 12 de julho de 2012

Última página


Três dias se passaram desde a última vez que vi alguém. Tenho para me fazer companhia apenas os barulhos que assombram a noite e chego à realização de que não posso estar são - é impossível que eu tenha mantido a sanidade até este ponto. Escrevo para me agarrar aos restos da minha mente, para não me perder por completo. Ou talvez para sentir que reste algo de humanidade em mim. Atormentam-me as memórias de tudo o que tive de fazer.
Eles vêm quando está mais escuro como se a própria escuridão os trouxesse. Ou como se eles a trouxessem e fosse escuridão a própria simulação de pele que vestem para disfarçar os olhos que reluzem momentaneamente apenas para sabermos no último instante da sua presença quando já não há forma de escaparmos. E depois disso é como se aqueles que são levados simplesmente desaparecessem, evaporando-se da própria realidade. A única prova de que tal não é o caso foram os gritos que se prolongaram, cada vez mais dolorosos e longínquos até fugirem do alcance do mais competente ouvido humano. Eu próprio poupei às crianças esse destino - os piores gritos eram os seus, que acentuavam a totalidade da nossa impotência. Nada desejaria mais agora que poder ter a mesma misericórdia que lhes foi cedida. Mas tornou-se claro que não restam mais escapatórias. 
Ignoro por completo a razão, se é que existe uma, para me terem deixado para último. Torna-se impossível não invejar os primeiros que foram colhidos. Pelo menos eles não tiveram de suportar o inferno de sobreviver num sítio como este onde só existe sofrimento e a noção de esperança deixou de ter significado. Ainda assim temo que venham finalmente por mim; sinto a morte a chamar pelo meu nome e como que se o esquecimento se aconchegasse ao meu corpo. Aproxima-se a escuridão. Não me resta mais.

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