sábado, 19 de fevereiro de 2011

Sobre princesas indefesas e dragões


A última vez que jantei em Lisboa foi pouco antes do dia acabar. Devido a dificuldades de planeamento acabámos por atrasar a hora do jantar e quando apanhámos o comboio para Cais do Sodré já levávamos umas cervejas no estômago para enganar a fome. Entretanto, um dos meus amigos telefonou a um colega de faculdade que poderíamos explorar para nos dar boleia para casa - não tínhamos intenção de parar de beber ou de estarmos prontos para voltar a casa antes do último comboio de volta e nunca há demasiada companhia para ceias tardias, muito menos se for alguém relativamente abstémio que nos possa devolver ébrios a casa.
As conversas tendem a ficar dormentes durante as viagens de comboio. Não sei se será o barulho das rodas sobre os carris ou a deslocação do cenário que as deixa sonolentas ou se será o facto de estarmos rodeados de desconhecidos que também se silenciam. A verdade é que nunca é grande incómodo, pelo menos para mim. É fácil entreter-me a observar as pessoas anónimas que habitam a mesmas carruagem que eu. Não se trata de bisbilhotice, é apenas o estudo interessado de outros seres humanos.
Estava eu a estudar interessadamente uma conversa telefónica quando numa paragem, não me recordo qual, entrou um casal a meio de uma discussão. O arrufo de namorados deixou toda a carruagem tensa pelas razões habituais e por outras menos habituais. Ela não teria mais que 17 anos. Tinha o cabelo negro apanhado numa grande trança e por baixo do acne havia um rosto bonito. Possuia o tipo de traços agradáveis que a tornariam numa mulher adulta muito atraente ou muito amargurada - com as mulheres bonitas os resultados tendem a ser a preto e branco. Estava triste.
Ele vinha atrás dela, notavelmente zangado, a barafustar algo sobre ele a chamar e ela continuar a andar sem fazer caso. A discussão já vivia neles há um bocado e a raiva dele vinha, claramente, do medo de a perder. Tinha os seus 40 anos, era careca, escanzelado e feio. Lembrava um insecto a tentar usar um disfarce barato de humano que de velho tinha perdido a cor e o pêlo. Sentaram-se os dois num banco próximo à minha frente, de costas para mim. Se não estivesse tão curisoso, ter-me-ia sentido enjoado, e toda a gente na carruagem sentira o mesmo.
A discussão continuou. É possível que tenha sido ilusão causada pelo ego masculino que deseja salvar toda e qualquer dama em apuros, mas ela parecia extremamente embaraçada com toda a situação. Parecia tímida e indefesa, e toda a sua existência parecia pedir para que alguém a defendesse. Mas que haveria eu de fazer? Por tudo quanto eu sabia, ela era de idade e não havia nada de errado do ponto de vista legal com a sua relação. Por tudo quanto eu sabia, era uma discussão entre amantes completamente normal - quantas vezes não terei eu feito figura de idiota e de insensível na rua ou num lugar público por um desentendimento com uma namorada - e gostavam genuinamente um do outro. Por tudo quanto eu sabia, ele, apesar do aspecto e da diferença de idades, tratava-a bem durante a maior parte do tempo e ele próprio tinha um dia sentido vontade de a proteger. Mas quando fizeram as pazes, aquele olhar lascivo dele e a forma como ele lhe afagava o pescoço deu-me a volta ao estômago. Sou um genuíno crente nos tons de cinzento mas, como já disse, com as mulheres bonitas as coisas parecem ter resultados a preto e branco.
Acabaram por sair numa paragem anterior à nossa. Um dos meus amigos, conhecendo-me bem, perguntou-me de imediato que tinha achado eu sobre o que se tinha passado. Menti-lhe. Disse que pouco ou nada tinha pensado sobre o assunto e ele reconheceu a mentira mas não fez muito caso. Quando chegámos ao Cais do Sodré estava lá o tal colega de faculdade. Nessa noite comemos, bebemos vinho e falámos com mulheres bonitas e durante umas horas esquecemo-nos da feiura do mundo.

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