segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Como conheci as mulheres


Cresci numa rua sossegada nas imediações da cidade, escolhida sem dúvida pelos várias pequenos confortos que oferecia como a proximidade de um infantário e de uma escola primária, para não mencionar o café situado apenas duas casas abaixo, no qual os meus pais podiam de forma rápida e conveniente comprar tabaco a qualquer hora. Os vizinhos, na sua maioria, eram pacatos ao ponto de nos permitirem que nos esquecêssemos da sua existência - uma falha mnésica bem-vinda por todos como parte da etiqueta comum do dia-a-dia da comunidade.
Como consequência, o típico dia da minha infância sufocava em não-eventos. A banalidade da segurança que me rodeava e as condições que me eram dadas não me permitiam vivenciar algumas coisas que mais tarde viria a desejar. Fui além do mais uma criança tardia, nascido consideravelmente após o apogeu da juventude dos meus pais, pelo qual a sua ausência de vivacidade convidava à limitada demonstração da exuberância energética de uma pequena criatura sem as preocupações de um adulto e sob o efeito anfetamínico de uma boa dose de açúcar. Vivia também com uma das minhas irmãs, mas tornara-se óbvio desde cedo que a década que separava as nossas concepções limitava em grande medida a partilha de interesse nas mesmas actividades. No entanto, nos dias em que as suas crises de adolescência revertiam para o seu menor índice comum, tinha suficiente bondade para tentar brincar comigo; e se ela estivesse de muito bom humor poderia até obsequiar-me com a honra de me apresentar às suas amigas (filhas únicas) com o propósito de lhes meter inveja por ter um irmão mais novo. Por vezes, para atingir esse propósito, chegava até a levar-me a passear e, como num concurso de cães de elevado pedigree, desfilava-me perante jovens mulheres cobertas de acne que elogiavam o quão querido e/ou fofinho eu era, desconhecendo por completo a minha tendência anarquista de estragar todos os objectos preciosos da adolescência da minha irmã e que ela armazenava no seu quarto que deveria estar fora de limites.
Apesar da descarada exploração à qual era submetido, estas foram as minhas primeiras realizações sobre a importância de ser um objecto de desejo das mulheres. Lembro-me de uma das suas amigas em particular (lembro-me dela como sendo a mais bonita) comentar de forma bastante agradável os meus olhos bonitos e como eu era charmoso e haveria de partir muitos corações quando tivesse idade para isso.

Infelizmente para mim na altura, os períodos em que a minha irmã arranjava um namorado tornavam-se mais solitários devido à aparente propriedade super-magnética dos orifícios orais dos indivíduos em questão. As actividades desportivas não se apresentavam como uma verdadeira opção devido a problemas físicos que me haviam sido impostos desde a nascença - segundo os médicos não tinha nascido para correr e até o simples acto de andar comportava algumas (se bem que ligeiras) preocupações. E como havia uma admirável ausência de crianças da minha idade na zona em que vivia, passava portanto os dias a brincar sozinho, a ver televisão e a criar estórias e mundos na minha imaginação. Todos estes factores culminaram no desenvolvimento de uma criança introvertida e "sensível", para não dizer estranha. Quando entrei no infantário continuei a sentir-me só; não sabia muito bem o que fazer com as outras crianças e as outras crianças também não sabiam o que fazer comigo. Penso que alguns adultos também não sabiam como haveriam de lidar comigo, começando desde cedo a minha tendência em deixar as pessoas em geral desconfortáveis.
O meu pai, vários anos mais tarde, acharia de bom tacto confessar-me casualmente durante um jantar de Natal em família a sua longa preocupação com a minha fraca manifestação de comportamentos tipicamente masculinos como os outros rapazes da minha idade, tais como o interesse em futebol, carros e a destruição ou roubo da propriedade dos vizinhos/escola. Ele tinha vivido a minha infância com o medo de que a minha "sensibilidade" se tornasse em "mariquice". A culpa terá sido parcialmente minha por ter negligenciado mencionar os longos e precoces desejos suscitados pela forma feminina e pela ideia de uma mulher, desejos que me atormentavam por não estar fisica ou realisticamente capaz de actuar sobre eles. Mas em minha defesa é preciso dizer que essa partilha de informação se tornara desnecessária pois através das quantidades indiscriminadas de programas de televisão e de filmes a que assistia eu já sabia porque é que a minha pila crescia e para o que ela haveria de servir um dia se eu tivesse sorte. Além do mais, a minha terrível timidez impedia-me de confessar tamanha crueza carnal a qualquer um dos meus pais.
Não, o meu destino era sofrer as minhas frustrações em silêncio e olhar com admiração para as personagens do ecrã e pensar que um dia também poderia viver tudo o que não me era permitido.

2 comentários:

Snow disse...

Que início de biografia giro, até me revejo em algumas partes (principalmente porque os meus pais também me tiveram quando já estavam nos 40 e tenho 16 anos de diferença em relação ao meu irmão mais velho). A tua “mariquice” infantil é que é curiosa, passei por algo do género mas, no meu caso, o que preocupava os meus pais eram os meus comportamentos “masculinos”, não que fossem realmente masculinos (acho a divisão do que é feminino e masculino está simplesmente mal pensada e absurda) mas que mesmo assim preocupavam a minha mãe que, até hoje, provavelmente pensa que eu prefiro mulheres do que homens (sexualmente).

(Mas tu, resumindo, eras um poético closet pervert case certo? Estou a brincar hehe.)

T disse...

Compreendo o que dizes mas o estigma das "marias-rapazes" é menor, em parte por incrivel chauvinismo: uma mulher com propriedades de um homem é mais positivo do que um homem com propriedades de uma mulher. Mas olha que realmente há alguns "sinais" em crianças mais pequenas que se tornam reveladoras quanto à orientação sexual adulta, se bem que não é tão preto no branco como as pessoas gostam de o interpretar.

E na verdade era dos mais "inocentes" dos rapazes que conhecia. Mas principalmente porque não tinha coragem de comentar coisas sobre as raparigas ou de confessar desejos, sonhos ou desejos sexuais de qualquer tipo quando no fundo todos o têm desde bastante cedo, até.

Quanto à poesia isso é outra história que talvez fique para depois.

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