Entrei na loja.
- Boa noite. - Cumprimentaram-me prontamente. O velho que me atendeu tinha largos anos. Usava óculos consideravelmente mais grossos que os meus. Era calvo e os poucos pedaços de cabelo branco que tinha enfeitavam-lhe a careca como neve no topo de uma montanha esférica.
- Boa noite. Vinha aqui trocar isto... - Coloquei de forma algo tosca o meu coração em cima do balcão. Há muito que se tornara escorregadio e então levei-o embrulhado em folhas de jornal. Só quando abri o papel empapado reparei que eram páginas de óbitos. Praguejei silenciosamente dentro da minha cabeça.
- Hm... - O velho, apesar de míope, olhou-me atentamente por cima dos óculos. - ... E qual a razão da devolução?
- Está estragado...
- Estragado?
- Sim, apodreceu, sei lá. Não percebo nada disto.
- Estou a ver... mas sabe, jovem, este item em particular não tem garantia.
- Como assim, não tem garantia? Porque raios não tem garantia?
O velho encolheu os ombros descontraidamente. Eu já me estava a irritar um pouco com a conversa. O meu coração tossiu fracamente um ligeiro batimento cardíaco em cima do balcão, no meio da porcaria que resultava das páginas de jornal húmidas.
- E não há nada que eu possa fazer agora?
- O jovem tem recibo, pelo menos?
- ... Qual recibo?
- Recibo de compra do coração.
- Tenho lá recibo de compra. Veio com o conjunto todo, fazia parte da mobília quando o recebi.
- Então assim fica complicado... - Passou a ponta dos dedos da mão esquerda pela careca. Imaginei por momentos a possibilidade de uma avalanche de neve que lhe escorresse pela testa abaixo. - Como está a quilometragem?
- Como é que acha que está? - Olhei desolado para a massa disforme em cima do balcão. Senti um vazio no peito.
- Podia tentar vender...
- Acha mesmo?
- Pois... e trocar, já tentou?
- Não conheci muita gente com quem alguma vez eu quisesse trocar. Além do mais ficaria de coração partido se conseguisse trocar com aqueles com os quais gostaria de trocar.
- Então olhe, não sei que lhe diga. Lamento mas não posso ajudar. - O meu desgosto deve ter-se tornado transparente nesse momento. - Pode ser que melhore...
- Pode ser, sim... - Retorqui, pouco convencido. Uma resposta automática para preencher o silêncio da conversa, não fosse entornar para fora de mim algum outro órgão de valor. - Bem, obrigado por tudo mesmo assim. - Embrulhei de novo o meu coração. - Boa noite.
- Boa noite.
Nota: Peço desculpa por este texto longo. Não sei de onde veio mas comecei a escrever e saiu do nada de uma só assentada.
3 comentários:
apesar de comprida adorei a historia . acho q se fosse realmete mt gente ja o tinha trocado =D
eu vendi o meu coração numa loja de souvenirs..
Espectacular! Adoro a tua abstração! Parabéns!
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