quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Por Nomear (nº1)

.
Carrega a sua mochila para todo o lado.

Leva nela um frenesim vago, irritadiço. Nos olhos, por sua vez, bamboleia uma fartura de olhar que já é sua familiar. Cansa-lhe a imagética das coisas.
Sempre as mesmas formas, sempre as mesmas cores. Sempre o mesmo desespero agudo e cristalino, abafado por debaixo de uma manta de bons-modos e de constricções sociais. Sempre as pessoas, esses retalhos sujos que teimam em destacar-se das linhas do tecido primordial, já quase irreconhecível.

"Quinze, dezasseis, dezassete..." passa por mais uma porta, mas nesta ele entra.
Embora ainda jovem, no café já é bem conhecido.

"É um descafeinado bem cheio, não é?" pergunta-lhe a figura gasta por trás do balcão.
Não responde, o hábito secou-lhe a boca. Não faz mal, como sempre o descafeinado brota da madeira carunchosa como que por magia. É mais uma memória esquecida.

Mexe a bebida como quem respira: nem um único pensamento é desperdiçado no ritual mecânico. À medida que a colher dança nas bordas da chávena, torna-se evidente que o descafeinado assemelha-se bastante a água suja, conspurcada por partículas sólidas mais ou menos definidas. No entanto, estes detalhes perdem-se para a nossa personagem que, por motivos vindouros, nem o consumirá; tão absorto está em si mesmo.

De uma mesa, um único par de olhos curiosos assenta na figura bizarra do jovem, banalizada pela frequência e pelo cenário deste estabelecimento em que cada um entra para entrar em si próprio, através do álcool ou de qualquer outra ferramenta de eleição, desde que adequada à tarefa.
São olhos azuis.

"E o meu descafeinado?" desperta subitamente.
"Ah, já cá está... Nem dei por nada".

Por capricho do Destino, nesse preciso e valioso momento de lucidez, capta-lhe a vista a poeirenta televisão do café. O telejornal transmite mais uma notícia. Uma notícia devastadora, capaz de fazer tremer a Terra inteira, capaz de mover montanhas. Capaz de destruir mundos.

0 comentários:

Sesguidores